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MUDANÇAS NEM SEMPRE SÃO SINAL DE PROGRESSO


Saí de Pará de Minas junto com muitos jovens de minha geração para estudar em Belo Horizonte e, como muitos, nunca mais voltei a viver na minha terra natal. Minha geração se espalhou por esse Brasil a fora mas sempre voltamos à terrinha para matar a saudade e rever familia e amigos. E, fato curioso, sempre que eu retornava, havia algo diferente. Em pouco tempo a cidade onde nasci e cresci foi desaparecendo e, em seu lugar nascia outra que, ainda hoje, estranho. Para quem ficou ,as mudanças ocorreram naturalmente sendo eles próprios os agentes das mudanças. Era o progresso que chegava. Era dinheiro circulando.

Vi quando derrubaram a velha Matriz. Acreditavam que ela estava muito velha e ia desabar sobre os fiéis. Uma nova já estava em gestação, mais ampla e moderna. Quando ia ao Pará nos finais de semana, eu ficava olhando a demolição. Uma grande equipe trabalhava incessantemente. Havia um grande guindaste. com uma bola de ferro pesadíssima na ponta, batendo nas paredes grossas da igreja que resistia. Os objetos de culto, os santos e quadros foram doados a igrejas dos distritos, outras coisas como o relógio, pedaços de altar, telas enormes ficaram guardados num cômodo do Asilo das meninas tranformado em faculdade. D. Anita Sales encontrou abandonado, num canto, um quadro pintado por meu avô, Alfredo Leite, retratando a matriz mais antiga de 1846, pintado em 1946 por ocasião do centenério da paróquia. Essa amiga da família recolheu o quadro e levou para minha mãe. Esta foi a única pintura do meu avô que minha mãe teve e que hoje tenho o privilégio de possuir.

Assim como a velha matriz outros prédios menores, referências de minha infância, foram derrubados: as casas amarelas, a casa do meu tio Tavinho, a casa do Cornélio Moreira, a casa da Anita Sales, a casa do Silvino Silva, a casa de minha avó Lilina na rua são José 389. Igual destino teve a casa de minha outra avó Cota que ficava onde hoje é o INSS, a linda construção art nouveau do Júlio Leitão na rua direita, o prédio antigo da Prefeitura Municipal uma bela construção, a casa arborizada da Marta de Abreu, onde hoje é o Banco Real. Também as casas dos meus tios, tio Silvio e tio Juvenal não existem mais, nem os cinemas Vitória e Imperial, o bar do Ari onde a gente comprava deliciosos picolés redondos de côco. Não ficou de pé nem o sítio do personagem mais importante da cidade , o Benedito Valadares. A área verde ao redor da cidade desapareceu e o clima que já foi agradável chegando a ser muito frio e nebuloso no inverno, se tornou quente. O calçamento de paralelepípedos ficou debaixo da camada de asfalto jogada nas ruas principais da cidade em dias de eleição para governador, tentativa desesperada e inútil de angariar votos na cidade por parte do então candidato Elizeu Rezende.Uma onda avassaladora de "progresso" tomou conta de todos. Era como se fosse necessário desmanchar tudo e fazer outra cidade, e num período de tempo rápido demais! Abriram-se grandes avenidas, dezenas de novos bairros nasceram ( vou tentar enumerar os bairros ou logradouros do Pará onde vivi: Centro, Nossa Senhora das Graças, Alto, Várzea, Avenida, Zambeque, Tabatinga, Automóvel Clube). A população crescia, muitos novos moradores chegavam de toda parte para viver numa cidade tão progressista. Os trilhos da estrada de ferro foram cobertos por grossa camada de alfalto acabando de vez com a linha de trens por onde tantas vezes viajei para Belo Horizonte, Bom Despacho, Mateus Leme ou para um final de semana na Fazenda dos Guardas. Para nós, que havíamos saído um dia para estudar fora, toda essa mudança foi um choque.

Logo veio a consciência de que alguns prédios deviam ser restaurados e usados pela população por serem referência cultural e histórica: o prédio do Fórum, o Grupo Escolar Torquato de Almeida, o Grupo Escolar Governador Valadares, os Colégios São Francisco departamentos feminino e masculino, hoje com outros nomes. A casa da Zezé Castelo Branco, salva por um triz e restaurada, hoje abriga o Museu da cidade. O prédio da antiga Escola de Comércio hoje é Casa de Cultura, a Estação do Pará onde funciona o cinema, a antiga granja Orsini tem sua casa preservada onde funciona a Escola de Artes Sica, o prédio onde funcionou o Asilo das meninas hoje é a FAPAM. As pinturas da velha Matriz foram restauradas e colocadas em novas capelas, os outros objetos são hoje acervo do Museu assim como muitas doações de famílias da cidade. A Banda de Música renasceu e hoje grupos de Congado se apresentam nas festas do Rosário. Um novo coreto foi construído onde havia o antigo na praça Torquato de Almeida.

As transformações fazem parte da vida. Só não podemos perder nossos rastros, as referências de nossa tragetória pela vida, o que constitui a história de um povo, sua identidade. As referências do passado são de grande importância para dar a personalidade a uma comunidade, sua estrutura básica.

José Efigênio, meu marido, lendo na gazeta Paraminense muitas reportagens onde as pessoas lamentavam a perda da antiga Matriz me disse: " Por que não constroem outra Matriz idêntica à que foi desmanchada?" Disse isto com conhecimento de causa pois ele visitou a Espanha e viu igrejas e monumentos totalmente reconstruídos depois de terem sido derrubados por bombardeios nazistas durante a Revolução espanhola.

Então eu pensei que o melhor presente para o paraminense, hoje, seria ter a sua velha Matriz de volta. E acredito ser possível através das fotografias existentes e da vontade de todos.
Então, mãos à obra!



PRESERVAR


Antes de argumentar qualquer coisa, eu vou ao dicionário para verificar o significado exato do termo preservar: " livrar de algum mal; defender; resguardar; manter livre de corrupção, perigo ou dano."

Por que Ouro Preto foi tombada como um monumento nacional e também internacional que deve ser preservado? O que significa " tombar"? Significa registrar, inventariar, fazer um balanço. Ouro Preto é uma cidade tombada no seu centro histórico que começa no Padre Faria e vai até as Cabeças, incluindo o seu entorno. Isto significa que a cidade deve se manter inalterada por ser de importância relevante para o país e para o mundo por suas construções, seu arruamento, seus monumentos, a arte barroca e os vestígios dos fatos históricos ocorridos no seu espaço urbano.

Desde que vim morar nesta bela cidade, primeira capital da Capitania de Minas Gerais, tenho participado de movimentos e ONGS destinadas a lutar pela sua preservação. Ela se conservou, na verdade, pelo fato de ter deixado de ser capital em 1897. Sua economia ficou estagnada e grande parte da população mudou para a nova capital, Belo Horizonte. Foi redescoberta posteriormente pelos modernistas de 22 que, encantados com sua beleza, a divulgaram para o restante do país. Foi quando decidiram adequá-la para o turismo com a construção do Grande Hotel que foi projeto do Niemeyer sendo os jardins de Burle Marxs. Recentemente Niemeyer disse que hoje não faria aquele hotel, que na década de 40, quando ele foi construído, pouco se sabia sobre preservação.

Depois o calçamento foi sendo desmanchado para facilitar a passagem de veículos, muitas ruas sofreram uma terraplanagem tendo desfeitas as escadarias defronte das casas. A rua Alvarenga foi a última a ser descaracterizada nos anos 60, tendo, no entanto, conservado suas escadarias.

Pouco a pouco as casas do século XVIII foram sendo vendidas e reformadas uma a uma. Hoje seria muito bom se fosse feito um inventário das casas originais e dado um incentivo às famílias que as preservam a exemplo do que fazem países como a Venezuela ou o Peru.

A década que acelerou a descaracterização da cidade original foi a década de 70 quando houve um enorme êxodo rural. As periferias de todas as cidades brasileiras incharam. Construções desordenadas apareceram nas encostas de Ouro Preto descaracterizando todo e entorno e acabando com a graciosidade de ruas como a rua de Santa Efigênia, única a serpentear ladeira acima, inspirando pintores e poetas. Muros de pedra canga, construídos na época do início da exploração do ouro, foram derrubados e usados como material de construção a exemplo do que fizeram no século XVI os espanhóis na bela capital inca, ambos os casos, fruto de inconsequente ignorância.

Hoje o que se vê é muita gente com diploma, mestres e doutores, gente com cursos no exterior, mas todo esse conhecimento não é capaz de preservar a originalidade de Ouro Preto. Corremos o risco de ver a cidade se tornar uma réplica de si mesma. Quando olhamos as fotografias da década de 50 o que sentimos é uma dor enorme de ver o que já foi irremedialvelmente perdido. E o mais grave: as restaurações estão sendo feitas sem o acompanhamento de arqueólogos. Isto significa que muitos vestígios da nossa história estão se perdendo. Eu fui testemunha de uma ação irreparável: ao reformar o assoalho da igreja de São Francisco de Assis, os responsáveis juntaram os ossos que estavam desde o sécuo XVIII enterrados nas campas numeradas e os colocaram amontoados numa única campa!

A História é uma ciência renovada constantemente. Enquanto houver um documento ou um vestígio ainda não estudado, a história não estará de todo esclarecida. E em Ouro Preto, a cada restauração de monumentos do século XVIII, centenas de vestígios, preciosos para a elucidação de fatos históricos, se perdem. A história dos africanos ou das classes menos favorecidas depende muito desses vestígios pois, quase não há documento escrito.

A polêmica atual sobre a troca das telhas originais da Matriz de Nossa Senhora do Pilar por telhas novas, é um bom momento para se questionar as ações que têm sido levadas a cabo em nome da preservação.

Lembrando que hoje não temos em Ouro Preto mão de obra especializada em restauro de construções de pau-a-pique, nem de muros de pedra seca nem de calçamento de paralelepípedo, que, aliás, nem é original.

Lembrando mais: hoje ainda circulam ônibus grandes pela praça Tiradentes e micro ônibus por todo o centro histórico, destruindo o calçamento e provocando rachaduras nas casas.

Infelizmente devo encerrar constatando que estamos hoje mais atrasados na conscientização dos moradores de uma cidade/museu como é Ouro Preto, que qualquer outro país da América do Sul.

Destruindo nossas referências históricas estamos perdendo a identidade e nossa força como povo.

Algumas perdas são irreparáveis.



Antigos carnavais em Ouro Preto


O carnaval sempre foi muito animado em Ouro Preto mas, no início do século XX, era uma festa com sabor muito especial.

Nesse evento, saíam blocos tradicionais como o Zé Pereira dos Lacaios, criado pelos funcionários do Palácio dos Governadores. Era o mais antigo deles e tinha sede no Antônio Dias. No Pilar havia o Clube dos Batutas e o Banjo de Prata, além do Zé Pereira el Toro, um bloco de meninos.

O início do carnaval acontecia no sábado à noite quando os cavaleiros do Zé Pereira saíam a galope pelas ruas da cidade. Os cavalos eram mansos e iam enfeitados com serpentina. As ferraduras tirando fogo das pedras. À frente ia um cavaleiro com o estandarte do bloco e, mais atrás, quatro outros cavaleiros tocando corneta. Na Praça Tiradentes, as autoridades entregavam a eles as chaves da cidade. Era o início oficial da folia.

Os cavaleiros galopavam de volta para seu bairro, de onde saíam em desfile puxando seu bloco. Subiam novamente as ladeiras, desta vez abrindo o belo cortejo. Atrás dos cavaleiros vinham os cariás, capetinhas pulando como loucos, liderados por um capetão que trazia uma lança nas mãos e ia riscando as pedras do calçamento arrancando faíscas. Depois vinham duas pessoas, uma de cada lado, carregando quatro lanternas multicoloridas, presas num bastão, feitas com papel celofane e contendo velas acesas dentro. Depois desfilavam, para delírio geral, os grandes bonecos chamados catitões: o Zé Pereira, elegante com seu fraque, o chapéu preto e gravata, um bigode preto em cima da boca entreaberta cheia de dentes; a baiana vestida de rendas brancas, com um turbante à Carmem Miranda na cabeça e brincos enormes de argola; e um boi que ia preso por suspensórios na altura da cintura de um homem. Trazia a cara do boi à frente com uma língua vermelhinha dependurada. O homem que sustinha o boi usava um chapéu e um pano amarrado abaixo dos olhos, escondendo sua identidade. Trazia nas mãos um chicote que levantava e batia no chão, enquanto ele evoluía em meio aos cariás. O povo corria entre excitado e temeroso. As crianças corriam próximas aos cariás e catitões, fascinadas e assustadas porque sabiam que iriam levar algumas chicotadas, chifradas ou empurrões, mas exatamente nesse risco estava o fascínio. Corriam tanto que , depois de tudo acabado, chegavam a casa molhadas de suor e com os olhos brilhantes.

Atrás desse grupo esfuziante, vinha uma orquestra tocada pelas pessoas mais respeitadas do bairro, num toque compassado e único. Vestiam fraques, gravata borboleta e cartola na cabeça. Havia um toque para andar pelas ruas planas e um toque mais suave para as ladeiras. Havia também corneteiros e figurantes, todos fantasiados. Tinham baianas, arlequins e pierrôs vestindo fantasias fabricadas por eles mesmos e pelas costureiras que trabalhavam como ninguém nessa época. Esse bloco era esperado com grande ansiedade e emoção.

O Clube dos Batutas foi fundado em 1930 por um ouro-pretano muito animado, chamado Juvenal Santos. Saiu até 1938 quando acabou por dificuldades financeiras. Seu último desfile, nesse ano, aconteceu a pedidos. O tema das fantasias foi “Ás de espada”. A roupa era rosa de cetim e, no peito, um Ás de espada. A sede era num casarão existente na Rua da Glória em frente à capela do Bonfim. O Sr. Juvenal ia ao Rio de Janeiro e trazia fardos de panos para confeccionar as fantasias e os carros alegóricos. Muitos amigos ajudavam.

Eles organizavam um belo desfile de cordão carnavalesco, com fantasias criativas, a cada ano era escolhido um tema para os carros alegóricos. Todos iam dançando e cantando pelas ruas da cidade, levando seu estoque de confetes, serpentinas e a lança perfume. Eles ganharam vários prêmios. O Sr Juvenal, fantasiado de D. João V com uma vara de metal na mão, abria o desfile. Todos saíam em ordem, dançando e cantando da sede do Clube em direção ao Largo da Alegria. Na porta do Clube dos Batutas, o seu estandarte verde, preto e branco ficava hasteado. Esse clube sempre ganhava o troféu de campeão. Suas taças, e eram muitas, ficaram no porão da sede e se perderam.
Após a mudança da capital para Belo Horizonte, que aconteceu em 1897, Bias Fortes, então governador do estado, disse que viria a Ouro Preto caçar onça, tão deserta ficaria a cidade.
Essas palavras desagradaram profundamente aos moradores da cidade e Juvenal Santos aproveitou essa fala para criar uma alegoria de carnaval. O bloco sairia composto por caçadores e uma onça enorme com a cara do Bias Fortes.

O governador foi informado sobre o tema do bloco e enviou um telegrama, proibindo terminantemente que ele saísse às ruas. Naqueles tempos os governadores eram bastante autoritários.

Juvenal Santos não se intimidou, saiu com o bloco mesmo assim. Quando chegou ao Largo da Alegria, a polícia estava lá para impedir que o bloco desfilasse. Então começou a maior pancadaria. Os moradores, apavorados com tal violência, chamaram o padre João, vigário do Pilar, que veio imediatamente com um crucifixo nas mãos. A interferência do padre surtiu efeito. Ele argumentou ser tudo aquilo apenas uma brincadeira, dispersando o bloco e a polícia. Antes, chamar um governador de ladrão era um crime.

O carnaval era interessante por seus clubes mas também por seus cordões e seus mascarados. Entre os vários cordões destacava-se o das “danças de negros”, cujo chefe era um tal Zé dos Santos, um homem gordo que fazia coisas incríveis no carnaval.

Mais ou menos nos anos 20, houve uma célebre caçada representada por esse cordão, criticando a mudança da capital para Belo Horizonte. Nessa representação havia a caricatura dos principais adeptos da mudança e o gordo representava uma enorme onça.

A “dança dos negros” era constituída por negros e mulatos que engraxavam a pele até ficarem negros retintos. As mulheres não participavam, mas eram representadas por homens, os mais fortes, que se vestiam com roupas femininas em manga de camisa, seios disformes e um lenço de chita na cabeça.

O bloco saía da Ladeira de Santa Efigênia, antiga Rua do Vira Sahia, e parava de esquina em esquina, dançando da maneira mais desengonçada possível. No meio dos dançarinos, rodavam negros fortes tocando viola, caixas, pandeiros, chocalhos, campainhas e guizos.

Por onde passavam, eram aplaudidos efusivamente pela alegria que irradiavam. O gordo então era extraordinário em suas palhaçadas e arrancava do público gargalhadas e aplausos.

Além desse grupo, havia vários outros menores, todos fantasiados e mascarados, cada qual com um tema, tentando fazer graça.

Não havia financiamento para os cordões. O comércio local fornecia panos e outras coisas necessárias. No final vinham os carros alegóricos com cavalos enormes, princesas e rainhas, todas muito bem vestidas. Conjuntos musicais acompanhavam os cordões tocando marchinhas. Havia vários outros instrumentos além das caixas de percussão.Todos os participantes cantavam alto e desfilavam dançando pelas ruas até a Rua de São José onde era o centro das festividades. As ruas estreitas da cidade se transformavam no palco de um grande espetáculo. As sacadas das casas da Rua de São José eram iluminadas e serviam de camarotes para as pessoas dançarem e apreciarem o desfile dos blocos.

O concurso do melhor clube acontecia nessa rua, ficando os juízes na sacada da Associação Comercial. A taça do campeão era entregue ali mesmo. Os carros alegóricos eram tão altos que uma rainha recebeu o troféu de cima do cavalo onde ia montada sobre o caminhão.

Em vários pontos da rua se apresentavam bandas tocando marchinhas de carnaval. Uma ficava perto do Tóffolo, outra no Largo da Alegria , outra perto do cinema e assim ao longo do trajeto por onde desfilavam os clubes e cordões, dando oportunidade a todos de dançar e brincar.

Em Ouro Preto havia vários carnavalescos, homens que gostavam da diversão sadia e criativa que era o carnaval dos anos 30 e 40. Entre eles estavam, além de Juvenal Santos, o Eugênio Diogo, Wilson Guimarães, Wilson Carvalho, Agostinho Cancela, Zé Vovô. Esses eram os verdadeiros senhores do carnaval que tudo faziam pelo prazer da alegria.

Havia o costume de jogar água de cheiro nas pessoas que brincavam nas ruas. Depois do carnaval muitas pessoas eram internadas na Santa Casa com pneumonia. Depois veio o lança-perfume que todos traziam e jogavam pelo ar uns nos outros, deixando um cheiro gostoso no ar. Passado o carnaval, as roupas ainda cheiravam lança-perfume, deixando uma saudade enorme dos dias de pura alegria pela Rua de São José. É por isso que até hoje, se você jogar um pouco de lança-perfume em alguém com mais de 70 anos, verá um brilho nos seus olhos da lembrança dos carnavais passados.

Hoje o carnaval ainda é bastante animado, mas não tem mais aquela espontaneidade que fazia o encanto dos antigos carnavais. Em alguns aspectos permanece aquela alegria ouro-pretana quando vemos surgir, na quinta-feira, o Bloco Vermelho e Branco do Rosário com os músicos entoando as antigas marchinhas e o povo acompanhando fantasiado de vermelho e branco. Ou ainda quando vemos um bloco como o Bloco da Barra que tem como lema: “Vem quem quer, vem como quiser”. E o que se vê é uma variedade incrível de fantasias, cada uma mais criativa que a outra, tudo coisa espontânea, pura brincadeira. Tem também o eterno Zé Pereira dos Lacaios que, hoje, apesar de bastante descaracterizado, é ainda uma alegria nas ruas da cidade. A Bandalheira continua sendo uma grande atração ao desfilar marchando ao som de instrumentos desafinados e uniformes caricaturais. O antigo costume de o ouro-pretano sair às ruas fantasiado, ainda sobrevive.
Trecho retirado do livro "Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto"



Circos

Um circo é algo fantástico, principalmente para quem foi criança nos anos 50 quando não havia TV, cinema só de vez em quando.

Quando o circo chegava a Pará de Minas, ele era montado na Várzea e a criançada acompanhava tudo, desde a montagem da lona até o cuidado com os animais e no final da temporada já estava amiga de todos os componentes do circo.

A propaganda para atrair o público era um espetáculo à parte. Lembro-me de um circo que desfilou com seus astros pelas ruas da cidade e eu, pequena ainda, via tudo dependurada na janela da casa da vovó Lilina, na rua São José 388. Desfilavam girafas, ursos e leões dentro de suas jaulas, cavalos enfeitados com acrobatas se equilibrando de pé sobre suas montarias. Uma girafa parou para comer as folhas tenras de uma árvore que havia em frente à casa do tio Tavinho Xavier, a última casa antes de subir para o jardim da prefeitura.A girafa parou o cortejo todo e ficou mastigando as folhas satisfeita. Mais satisfeitos ainda ficaram os netos na janela do tio Tavinho vendo a girafa de tão perto.

No cortejo desfilavam também elefantes e uma moça de maiô brilhante era apanhada pelo elefante, pela tromba, e colocada em cima dele. Depois vinham os palhaços dando piruetas, o mágico com sua cartola de onde saiam sempre coelhos. E mais os trapezistas, os atores, os malabaristas jogando suas bolas para cima, chipanzés vestidos e uma pequena orquestra. Na frente vinha o apresentador vestindo smoking colorido e com o chapéu ia saudando a todos. Ninguém perdia um espetáculo como este.

Meu tio Mário Leite contava um episódio muito interessante acontecido na passagem de um circo quando ele era ainda menino pequeno. Coisa do início do século XX quando havia ainda muitos ex- escravos na cidade. Um antepassado, Antônio Leite Praça, português, era o proprietário de uma fazenda grande no caminho para Belo Horizonte, onde há uma lagoa, já foi da Divinal e hoje não sei de quem é. Ele tinha 40 escravos e casou-se com uma mulata de nome Matildes. Quando houve a abolição ele recebeu a notícia pelos jornais que vinham do Rio de Janeiro no lombo de burros, com dois meses de atraso. Reuniu seus escravos e deu-lhes a notícia, deixando que resolvessem o que fazer de suas vidas agora que eram livres. Ex- escravos não tinham lugar na sociedade, eles não queriam sair dali pois eram bem tratados. Assim o tio Mário chegou a conhecer quatro desses ex -escravos já velhos ainda moradores da fazenda. Seu Cornélio era um deles e usava vários anéis em cada dedo. Uma vez, o circo chegou à cidade e desfilava pelas ruas com todo o seu elenco. De repente, um elefante pegou seu Cornélio pela tromba e o jogou longe. No hospital, todo quebrado, se recuperou. O povo disse que ele fora reconhecido por um seu conterrâneo africano.

Circo cheio, meninada e adultos dependurados nas arquibancadas, comendo pipoca ou chupando pirulito de mel esperando o início do grande espetáculo. As meninas, que então só usavam saias, ficavam constrangidas nas arquibancadas com medo de alguém ver suas calcinhas. O show sempre começava com a entrada dos palhaços fazendo rir a todos enquanto o cenário do próximo número era montado.

Palhaço famoso, nosso conterrâneo foi o Benjamim de Oliveira. Benjamim do Malaquias, como era conhecido. Filho de família pobre da Várzea, fugiu com um circo e se tornou palhaço. Meu pai, Zezinho Xavier, se lembra de um show onde ele se apresentava com sua filha Jussara e cantava:

“Eu vi você bulinar Lili, eu vi,
Fiquei muito admirado
De ver você beijando o namorado.”

Ele inovou o espetáculo circense com peças teatrais, números cômicos, números musicais, numa tentativa de fazer frente ao cinema que crescia muito. Ele se apresentava também no Ideal Cinema, o cinema do Juca Ferreira. Sempre, ao chegar ao Pará, ele abraçava e beijava o coqueiro que havia defronte da valha Matriz de Nossa Senhora da Piedade.

Um personagem de que me lembro muito e se apresentava no circo e nos teatros era o Delmário. Ele falava um monte de bobagens e piadinhas e cantava com uma sanfona:

“Eu tinha uma vizinha
Uma veia sorterona,
A veia num parava
De tocar sua sanfona:
Nheco, nheco, nheco,
Essa veia é de amargar,
Nheco, nheco, nheco,
Ela num para de tocar."

E a música prosseguia fazendo todo mundo rir. O circo lotava sempre que o Delmário se apresentava.

Um número ótimo, apresentado em todos os circos e que ninguém se cansava de ver era o teatro dos palhaços. Vai ver que foi coisa inventada pelo Benjamim.Dois palhaços se sentavam num banco e começavam a contar casos de cemitério, de caveiras e almas penadas. De repente uma caveira se aproxima de mansinho e senta perto de um deles. Ele, sem olhar, continuava a falar, abraçava a caveira. Nisso o outro já tinha visto a bicha e saiu correndo deixando seu companheiro em má companhia. Ele continuava falando sem ver, a platéia desesperada, gritando e a cena correndo. O ponto alto era quando ele se virava e via a caveira. Então gritava e saia correndo com a caveira atrás. O público ia ao delírio.

O circo Irmãos Elias ia sempre ao Pará.. Os donos eram da região mesmo e toda a família trabalhava no circo. Lembro-me de um número incrível com vários irmãos e irmãs acrobatas que saltavam um após o outro e iam se aparando. O menor era uma criança de uns 6 anos. Incrível! Este circo, como muitos outros de pequeno porte, foram desaparecendo com o surgimento da televisão. Dizem que a dona do circo ficou doente, sua vida não tinha sentido, quase morria de tristeza pois não se acostumava com a vida fora do circo. Seus filhos, preocupados, se reuniram e resolveram comprar um pequeno circo para ela. Eu cheguei a ver essa senhora, já velhinha, à frente do seu circo, se apresentando pelas cidades do oeste mineiro.

Um número de grande sucesso, ponto alto do espetáculo, era o número dos trapezistas. Todas as meninas se apaixonavam por eles. Eu e a Maria Olga chegamos a fazer um trapézio numa árvore do quintal da casa onde morávamos, a casa do jacinto Mendonça onde hoje mora o Urbano Medeiros. Tentávamos fazer as estripulias que víamos no circo e chegamos a fazer algumas proezas, isto escondido, é claro. Um dia caí de cabeça no chão e não pude nem chorar direito para não sermos descobertas senão, adeus trapézio! Lembro de uma moça da cidade que fugiu com o circo. Havia se apaixonado por um dos trapezistas.

O circo fazia parte de nossa vida, do nosso dia a dia enquanto estava na cidade. Um circo estava montado do lado esquerdo na av. Presidente Vargas, depois da ponte grande. Nós ficamos amigas dos meninos do circo. Um deles foi atropelado quando passava de bicicleta pela ponte e foi socorrido no Hospital onde veio a falecer. Todas nós, irmãs e primas fomos visitá-lo e acompanhamos o enterro chorando como se fossemos da família.

Os números das feras eram emocionantes. Os leões saltavam arcos de fogo, rugiam e deixavam o domador colocar a cabeça dentro de sua boca, para horror de todos nós. Ele ficava o tempo todo com um chicote na mão, batendo com ele no chão e um banco na outra mão servindo de escudo.

Uma vez, em Belo Horizonte, eu e meu marido José Efigênio, estávamos de carro no trânsito. Num certo momento ficamos atrás de um carro-jaula com um leão dentro. Então, o leão fez xixi e molhou o vidro do nosso carro. Foi preciso usar o limpador de pára-brisa. Quando contamos ninguém queria acreditar.

Os mágicos encantavam a todos. Tiravam coisas incríveis da cartola. Dos bolsos, faziam objetos desaparecerem e depois surgirem nos locais mais inusitados. Colocavam aquelas mulheres de maiô brilhante dentro de uma caixa e enfiavam espadas por todos os lados, no maior suspense. Depois de mostrar que não havia nenhum canto sem espada, ele ia tirando uma a uma e abria a caixa de onde a mulher saia ilesa em meio aos suspiros de emoção da platéia. Outras vezes, a mulher era deitada numa caixa comprida como um caixão. Essa caixa era fechada e o mágico a serrava ao meio e separava as metades mostrando ao público. Depois juntava as metades e abria a caixa de onde a mulher saia como se nada tivesse acontecido.

Estes números me fazem lembrar do tio Jujú, o nosso mágico de família.Ele morava em Belo Horizonte e quando ia ao Pará visitava todos os irmãos. Nessas ocasiões ele sempre estava rodeado de crianças porque fazia mágicas e brincadeiras o tempo todo.ele pedia uma moeda e a fazia desaparecer e perguntava a todos onde ela estava. Todos procuravam mas ninguém sabia da moeda. Ele conferia vários locais sugeridos e nada. Feito o suspense desejado ele se dirigia a uma criança qualquer e, para espanto de todos, puxava sua orelha de onde caia a moeda, e o nariz de outra deixando cair outra moeda e assim terminava com a mão cheia de moedas. Ele jogava um objeto no telhado e tirava do bolso de alguém. Era uma festa. Ele tinha uma destreza enorme nas mãos. Parecia cortar o dedo polegar e colocá-lo novamente no lugar.

Hoje vivo em Ouro Preto, num local conhecido popularmente como Praia do Circo pois era o local onde os circos eram montados desde muitos anos atrás.Passa um córrego que tinha sua água limpa e areia, daí o nome de praia.

Nossas emoções, de crianças sem TV, eram muito intensas. Hoje fui a um pequeno e pobre circo que não é nem a sombra dos pequenos circos de anos passados, mas que me fez lembrar de outros circos e suas histórias.

Ouro Preto, 26 de agosto de 2001